Exibindo-se como não o tinha feito em nenhuma outra época e se apresentando como supremo regulador dos destinos morais da Humanidade, o materialismo teve por efeito apavorar as massas pelas conseqüências inevitáveis de suas doutrinas para a ordem social. Por isto mesmo provocou, em favor das idéias espiritualistas, uma enérgica reação, que deve provar-lhe que está longe de ter simpatias tão gerais quanto supõe, e que se ilude singularmente se espera um dia impor suas leis ao mundo.
Seguramente as crenças espiritualistas dos tempos passados são insuficientes para este século; elas não estão no nível intelectual de nossa geração; sobre muitos pontos estão em contradição com os dados positivos da Ciência; deixam no espírito um vazio incompatível com a necessidade do positivo, que domina na sociedade moderna; além disso, cometem o erro imenso de se imporem pela fé cega e de proscreverem o livre-exame. Daí, sem a menor dúvida, o desenvolvimento da incredulidade no maior número; é muito evidente que se os homens não fossem alimentados, desde a infância, senão por idéias susceptíveis de serem confirmadas mais tarde pela razão, não haveria incrédulos. Quantas pessoas, reconduzidas à crença pelo Espiritismo, nos disseram: Se sempre nos tivessem apresentado Deus, a alma e a vida futura de maneira racional, jamais teríamos duvidado!
Pelo fato de um princípio receber uma aplicação má ou falsa, segue-se que se deva rejeitá-lo? Isto acontece com coisas espirituais, como com a legislação de todas as instituições sociais: é necessário apropriá-las aos tempos, sob pena de sucumbir. Mas em vez de apresentar algo de melhor que o velho espiritualismo clássico, o materialismo preferiu tudo suprimir, o que o dispensava de procurar, e parecia mais cômodo àqueles a quem importuna a idéia de Deus e do futuro. Que pensariam de um médico que, achando que o regime de um convalescente não é bastante substancial para o seu temperamento, lhe prescrevesse não comer absolutamente nada?
O que é de admirar é encontrar na maioria dos materialistas da escola moderna esse espírito de intolerância levado aos últimos limites, logo eles que reivindicam sem cessar o direito de liberdade de consciência. Seus próprios correligionários políticos acham-se sem graça diante deles, assim que fazem profissão de espiritualismo, como o Sr. Jules Favre, a propósito de seu discurso na Academia (Figaro de 8 de maio de 1868), e como o Sr. Camille Flammarion, afrontosamente ridicularizado e denegrido, num outro jornal, cujo nome esquecemos, porque ousou provar Deus pela Ciência. Segundo o autor dessa diatribe, não se pode ser sábio senão com a condição de não crer em Deus; Chateaubriand não passa de um mísero escritor e velho caduco. Se homens de tão incontestável mérito são tratados com tão pouco respeito, os espíritas não devem se lamentar por serem troçados a respeito de suas crenças.
Há neste momento, da parte de certo partido, uma oposição furibunda contra as idéias espiritualistas em geral, nas quais o Espiritismo se acha naturalmente englobado. O que ele busca não é um Deus melhor e mais justo, é o Deus-matéria, menos constrangedor, porque não tem que lhe dar contas. Ninguém contesta a esse partido o direito de ter a sua opinião, de discutir as opiniões contrárias, mas o que não se lhe poderia conceder é a pretensão, no mínimo singular para homens que se apresentam como apóstolos da liberdade, de impedir que os outros creiam à sua maneira e de discutir as doutrinas que não partilham. Intolerância por intolerância, uma não vale mais que a outra.
Um dos melhores protestos que temos lido contra as tendências materialistas foi publicado no jornal Droit, sob o título de: O materialismo e o direito. A questão aí é tratada com notável profundeza e perfeita lógica, do duplo ponto de vista da ordem social e da jurisprudência. Sendo a causa do espiritualismo a do Espiritismo, aplaudimos a enérgica defesa da primeira, mesmo quando aí se faz abstração da segunda. Eis por que pensamos que os leitores da Revista verão com prazer a reprodução desse artigo.
(Extraído do jornal Droit, de 14 de maio de 1868)
A geração presente atravessa uma crise intelectual, com a qual não se deve inquietar além da medida, mas seria imprudência deixar o seu desenlace ao acaso. Desde que a Humanidade pensa, acredita-se na alma, princípio imaterial, distinto dos órgãos que o servem; faziam-na até imortal. Acreditava-se numa Providência,
criadora e senhora dos seres e das coisas, no bem, no justo, na liberdade do arbítrio humano, numa vida futura que, para valer mais do que o mundo em que estamos, não precisa, como diz o poeta, senão existir. Modernos doutores, que começam a tornar-se barulhentos, mudaram tudo isto. O homem é por eles reconduzido à dignidade do animal, e este reduzido a um agregado material. A matéria e as propriedades da matéria, tais seriam os únicos objetos possíveis da ciência humana; o pensamento não seria senão um produto do órgão que é a sua sede, e o homem, quando as moléculas orgânicas que constituem a sua pessoa se desagregam e voltam aos elementos, pereceria inteiramente.
Se as doutrinas materialistas jamais devessem ter a sua hora de triunfo, os jurisconsultos filósofos – é preciso que se diga para sua honra – seriam os primeiros vencidos. Que teriam a fazer suas regras e suas leis num mundo no qual a lei da matéria fosse toda a lei? As ações humanas não podem ser senão fatos automáticos, se o homem for todo matéria. Mas, então, onde estará a liberdade? E se a liberdade não existir, onde está a moral? A que título uma autoridade qualquer poderia pretender dominar a expansão fatal de uma força toda física e necessariamente legítima, desde que é fatal? O materialismo arruína a lei moral e, com a lei moral, o direito, a ordem civil toda inteira, isto é, as condições da existência da Humanidade. Tais conseqüências imediatas, inevitáveis, certamente merecem que nelas se pense. Vejamos, pois, como se reproduz esta velha doutrina materialista, que não se viu despontar, até o presente, senão nos piores dias.
Quase sempre houve materialistas, teóricos ou práticos, quer por desvio do senso comum, quer para justificar baixos hábitos de viver. A primeira razão de ser do materialismo está na imperfeição da inteligência humana. Cícero disse em termos muito duros, que não há tolice que não tenha encontrado algum filósofo para defendê-la: Nihil tam absurde dici potest quod non dicatur ab aliquo philosophorum. A segunda razão de ser está nas más inclinações do coração humano. O materialismo prático, que se reduz a algumas máximas vergonhosas, sempre apareceu nas épocas de decomposição moral ou social, como as da Regência e do Diretório. Na maioria das vezes, quando houve pretensões mais elevadas, o materialismo filosófico foi uma reação contra as exigências exageradas das doutrinas ultra-espiritualistas ou religiosas. Mas em nossos dias ele se produz com um caráter novo; chama-se científico. A história natural seria toda a ciência do homem; nada existiria do que ela não tem por objeto e, como não tem por objeto o espírito, o espírito não existe.
Para quem queira pensar no caso, com efeito o materialismo é mesmo um perigo, não da ciência verdadeira, mas da ciência incompleta e presunçosa; é uma planta má que cresce em seu solo. De onde vêm as tendências materialistas, mais ou menos acentuadas, de tantos sábios? De sua constante ocupação em estudar e manipular a matéria? Talvez um pouco. Mas elas vêm sobretudo de seus hábitos de espírito, da prática exclusiva de seu mérito experimental. O método científico pode reduzir-se nestes termos: Não recolher senão fatos, deduzir muito prudentemente a lei desses fatos, banir absolutamente todas as pesquisas das causas. Não é de admirar, depois disto, que inteligências de visão curta, débeis nalgum sentido, deformadas, como nos tornamos todos, por um mesmo trabalho intelectual ou físico muito contínuo, desconheçam a existência dos fatos morais, aos quais não convém a aplicação de seu instrumento lógico e, por uma transmissão insensível, passam da ignorância metódica à negação.
Entretanto, se este método exclusivamente experimental pode achar-se em erro, é bem no estudo do homem, ser duplo, espírito e matéria, cujo organismo mesmo não pode ser senão o produto e o instrumento da força oculta, mas essencialmente una, que o anima. Não se quer ver no organismo humano mais que um agregado material! Por que cindir o homem e não querer, metodicamente, nele considerar senão um princípio, se há dois? É possível gabar-se, ao menos, de assim explicar todos os fenômenos da vida? O materialismo fisiológico, que prepara o materialismo filosófico, mas que a ele não conduz necessariamente, a cada passo é ferido de impotência. A vida, digam o que disserem, é um movimento, o movimento da alma informando o corpo; e a alma é, assim, a mola que move e transporta, por uma ação desconhecida e inconsciente, os elementos dos corpos vivos. Trazendo sistematicamente o estudo do homem físico às condições do estudo dos corpos organizados; não vendo nas forças vivas de cada parte do organismo senão propriedades da matéria; localizando essas forças em cada uma dessas partes; não considerando a vida senão como uma manifestação física, um resultado, quando ela talvez seja um princípio; afastando a unidade do princípio de vida como uma hipótese, quando pode ser uma realidade, cai-se, sem dúvida, no materialismo fisiológico, para depois escorregar rapidamente no materialismo filosófico; mas se conclui por uma enunciação e um exame incompleto dos fatos; acreditou-se marchar apenas apoiado na observação, e afastou-se o fato capital que domina e determina todos os fatos particulares.
O materialismo da nova escola não é, pois, um resultado demonstrado do estudo; é uma opinião preconcebida. O fisiologista não admite o espírito; mas que há de admirável? é umacausa, e ele se pôs no estudo com um método que lhe interdita precisamente a pesquisa das causas. Não queremos submeter a causa do espiritualismo a uma questão de fisiologia controvertida, e sobre a qual nos poderiam recusar em bom direito. O sentido íntimo me revela a existência da alma com uma autoridade bem diversa. Ainda que o materialismo fisiológico fosse tão verdadeiro quanto é discutível, nem por isso nossas convicções espiritualistas ficariam menos inteiras. Fortalecido pelo testemunho do senso íntimo, confirmado pelo assentimento de mil gerações que se sucederam na Terra, repetiríamos o velho adágio: “A verdade não destrói a verdade”, e esperaríamos que a conciliação se fizesse com o tempo. Mas, de que peso não nos sentimos aliviados quando vemos que, para negar a alma e dar esta declaração como um resultado da Ciência, o sábio, por confissão própria, partiu metodicamente dessa idéia de que a alma não existe!
Lemos muitos livros de fisiologia, em geral muito mal escritos; o que nos chamou a atenção foi o vício constante dos raciocínios do fisiologista organicista, quando sai do seu assunto para se fazer filósofo. Vê-se-o constantemente tomar um efeito por uma causa, uma faculdade por uma substância, um atributo por um ser, confundir as existências e as forças, etc., e raciocinar em conseqüência. Dir-se-ia uma aposta. Algumas vezes ele transpõe distâncias incríveis sem desconfiar do caminho que faz. Que espírito exato e claro, por exemplo, jamais pôde compreender esse pensamento tão conhecido de Cabanis e de Broussais, que “o cérebro produz, secreta o pensamento?” Outras vezes, o homem positivo, o homem da ciência, o homem da observação e dos fatos, nos dirá seriamente que o cérebro “armazena as idéias.” Ainda um pouco, ele as desenhará. É metáfora ou mixórdia?
Jamais será pedido à ciência natural que tome partido pró ou contra a alma humana; mas por que ela não se resolve a ignorar o que não é objeto de suas investigações? Com que direito ousa jurar que não há nada depois dela, após ter decretado não querer vê-la? Por que não guarda um pouco dessa reserva, que nos convém tão bem a todos, sobretudo aos que têm a pretensão de não avançar senão com certeza? Com que autoridade o anatomista poderá declarar que a alma não existe, porque não a encontrou sob o seu escalpelo? Pelo menos começou ele a demonstrar rigorosamente, cientificamente, por experiências e por fatos, segundo o método que preconiza, que o seu escalpelo pode atingir tudo, até mesmo um princípio imaterial?
Seja como for com todas estas questões, o materialismo, dizendo-se científico, sem por isto valer mais, se espalha à luz do dia e nos deixa ver o que seria o direito materialista. Ai! o estado social materialista nos ofereceria um bem triste e vergonhoso espetáculo. Antes de mais, uma coisa é certa: se o homem não existe senão por seu organismo, essa massa material e automática, em que doravante se tornará todo homem, provido de um encéfalo para secretar idéias, será irresponsável por todos os movimentos que produzir.27 Com ela não será preciso que o 27 Como o fígado não é responsável pela bile que secreta. encéfalo de uma outra massa material se decida a secretar idéias de justiça ou de injustiça; porque essas idéias de justiça ou de injustiça só são aplicáveis a uma força livre, existente por si mesma, capaz de querer e de se abster. Não se contesta a torrente ou a avalanche.
Então a liberdade, isto é, a vontade de agir ou não agir, não existirá aqui, nem tampouco o direito. Nesse estado, todas as forças terão um pleno e absoluto poder de expansão. Tudo será legítimo, lícito, permitido, mesmo ordenado, digamos; porque é claro que tudo faz que não seja o ato de uma vontade livre, que não se produz como um ato moralmente obrigatório ou moralmente proibido; é um fato obrigado, que bem pode vir chocar-se com um fato contrário do mesmo caráter, mas que cai como todos os fatos físicos, sob o império inelutável das leis naturais.
Basta expor tais idéias para lhes fazer justiça. É o sistema de Espinoza, que muito resolutamente estabeleceu o princípio do direito da força. Os fortes, diz Espinoza, são feitos para subjugar os fracos, como os peixes para nadar e os maiores para comer os menores. No sistema materialista, o que seria chamado direito não poderia ter um princípio diferente. Mas que homem dotado de senso ousaria confessar tal sistema que, por si só, bastaria para refutar o materialismo, pois que dele decorre necessariamente? Querem, entretanto, que esse princípio da força se ache, de fato, limitado por si mesmo? Nada será ganho, ou quase nada, com esse flagrante desmentido do princípio. Admitamos, se quiserem, que a substância pensante (continuamos a falar a língua dos materialistas) se combine nos indivíduos para regularizar essa expansão da força; a que chegará? No máximo a um conjunto de regras que terão por base o interesse e, ainda, como não há outras leis senão as leis da matéria, essa legislação não terá nenhum caráter obrigatório; cada um poderá infringi-la se sua matéria pensante lho aconselhar e se sua força lho permitir. Assim, nesta singular doutrina, não se teria nem mesmo um estado social construído sobre o plano da triste sociedade de Hobbes.
Não falamos ainda senão das condições primeiras de todo estado social. Mas, em toda sociedade civil, consagra-se a propriedade individual; contrata-se, vende-se, aluga-se, associa-se, etc. O casamento funda a família; daí nasce toda uma ordem nova de relações. Pela educação do lar e pela educação pública, perpetuam-se as tradições. Assim se forma o espírito nacional e se desenvolve a civilização. Nossa sociedade materialista terá o seu direito civil? Impossível supô-lo, porquanto o direito civil, em seu conjunto, tem por princípio a justiça, e a justiça não pode ser senão uma palavra, ou uma contradição, numa doutrina que só conhece a matéria e as propriedades da matéria. Chega-se assim, inevitavelmente, a concluir (a menos que delirando a propósito) que o estado civil da sociedade materialista é o estado de bestialidade.
Nada dizemos em demasia quando avançamos que o materialismo é destrutivo, não de tal moral, mas de toda moral; não de tal estado civil, mas de todo estado civil, de toda sociedade. É preciso recuar com ele além das regiões da barbárie, além da selvageria. Deve-se proscrevê-lo por isto? Que Deus não o permita. Reconhecido o seu caráter, não pediríamos, nada obstante, que o seu ensino fosse interditado; nós o defenderíamos, se necessário, contra toda restrição pela força, desde que o professor não falasse senão em seu próprio nome. A liberdade nos é tão cara (os leitores deste jornal o sabem); traz consigo tais benefícios; temos tal confiança no bom-senso público, que não conceberíamos nenhuma inquietação por ver toda cátedra, toda tribuna aberta a todas as idéias.
Mas a questão já não se apresentaria nos mesmos termos se acontecesse que o professor falasse numa cátedra do Estado, retribuída pelo orçamento. Com ou sem razão, o Estado ensina. Pode ensinar doutrinas cujas conseqüências mais imediatas sejam destrutivas do Estado? Ficará ao arbítrio do professor fazer o Estado endossar todas as doutrinas que puder conceber? A questão não é simples. Os professores do Estado são funcionários públicos; seu ensino não pode ser e não é senão um ensino oficial. O estado é responsável pelo que dizem; responde perante a juventude e as famílias. Se com as grandes palavras de independência do professorado recusássemos seu controle, far-nos-íamos opressores do Estado, pela mais hipócrita das opressões, porque levaríamos à sua conta doutrinas que ele desaprova.
Sem dúvida a autoridade superior deve aos seus professores, muitas vezes envelhecidos pelo estudo, cuidados, considerações e uma grande confiança, como deve aos seus generais, aos seus administradores e aos seus magistrados; mas ela não lhes deve o sacrifício do mandato, quando é de presumir-se que comande o país. O professor não é mais independente do Estado do que o general que pretendesse comandar uma insurreição.
H. Thiercelin
R.E. ,
agosto de 1868, p.
315
|